10 janeiro 2008

Carta ao Senhor Ministro da Saúde

Carta ao Senhor Ministro da Saúde

Prostrada na minha cama, consumida pelo sofrimento físico e psicológico que me causa a minha bacia fracturada, mantenho para me distrair, a televisão ligada todo o dia, levantando e baixando o som, consoante o interesse do programa.

-Hora do Telejornal! Notícia de destaque: o encerramento das Urgências de Anadia e Fundão.... Ups! Alto aí!... Isso interessa-me! Claro, eu vivo no Fundão! Subi de imediato o som... Mais Urgências a encerrar...e desta vez, sempre vai ser a nossa! Ouvi o Ministro justificar, justificar, enrolar e... até dizer que há pessoas que se dirigem às Urgências sem delas verdadeiramente necessitarem.

Com indignação, Sr. Ministro, ouvi-o apontar como exemplo disso, certa vez em que V. Exª, ao recorrer aos Serviços de Urgência de um hospital, se cruzou com uma senhora que entrou numa maca, mas muito “bem arranjada”. Acrescentou que tal senhora só poderia ter-se servido dos serviços de uma ambulância, como meio de transporte, para usufruir de cuidados médicos, insinuando que não precisaria de atendimento urgente.
Sabe Sr. Ministro!? Eu não sou certamente a senhora com quem se cruzou... Nunca tive o desprazer de me cruzar pessoalmente consigo... Mas poderia perfeitamente ter sido!...

Ainda se festejava o Natal!... 26 de Dezembro... 19horas: banhinho tomado, perfumada, maquilhagem retocada, cabelos acabadinhos de arranjar (vinha a sair do cabeleireiro), saia bordada com lantejoulas e o meu melhor casaco comprido...

Uma pequena desatenção e.... Ups!... Desequilibrei-me nas escadas... Estatelei-me no passeio, mesmo ali em plena via pública. Embati com a côxa direita no chão. Uma dor alucinante na virilha avisava-me que tinha feito estragos. Ali fiquei deitada, gemendo angustiada e implorando que não me tocassem, antes telefonassem para o 112.

Apenas me descalçaram cuidadosamente (a meu pedido) as botas de salto alto que agora me incomodavam. Mais lantejoulas ficaram à vista, desta vez as que bordavam as minhas meias, a condizer com a saia .

A ambulância do INEM conduziu-me às já moribundas Urgências do Fundão, seguindo depois do Raio-X, para as da Covilhã.

-V. Exª não estava lá, pois não!?... Não! No Fundão é mais que certo que não! Se necessitasse delas, não estaria a encerrá-las. Na Covilhã? Duvido! Não devem ser essas as Urgências a que recorre quando necessita. Caso contrário não estaria a entupi-las.

-Desculpe Sr. Ministro, embora eu morasse mesmo ali ao lado daquelas escadas de onde caí... não deu!... Não deu mesmo, para ir vestir o pijama, despentear os meus cabelos e retirar a maquilhagem antes que a ambulância chegasse. Não propriamente pela rapidez da sua chegada mas, porque... não deu!... Sabe, aquela dor alucinante, não me dava tréguas...

Peço desculpas ao Sr. Ministro, não só por mim, mas também pela outra senhora, por todos os outros acidentados, por todos os que são surpreendidos por um enfarte, por um AVC... e que não têm tempo... tempo do tempo... e até tempo de vida... para vestir o pijama e apresentar-se condignamente nas Urgências de um hospital.

À cautela, quando recuperar desta, talvez seja melhor andar por aí de pijama, não vá acontecer outro acidente (salvo seja) e me surpreenda “bem arranjada” numa maca do INEM algures aí numas Urgências causando má impressão ao Sr. Ministro.

Já agora, permita-me uma pergunta:

-Quando V. Exª recorreu às Urgências (como diz), ía de pijama?! Não ía de fato e gravata, pois não?! Veja lá Sr. Ministro, tem de dar o exemplo!...

Só mais uma coisa:

-Também esteve assim como eu, esquecido numa maca encostada a um canto do corredor, apinhado de gente que gemia, em macas ou em bancos e desesperavam pela sua vez?!... E o médico também chamou várias vezes pelo seu nome, lá de dentro do seu consultório sentado, depois de ter observado o seu raio-x , esperando que entrasse pelos seus pés?!? Ah!..Mas o seu nome ele teria reconhecido! E V. Exª se calhar, até conseguia levantar-se e andar... mas eu não!... Não dava mesmo!... Não dava para empurrar a minha própria maca e não havia quem o pudesse fazer por mim. Teve que o Dr. vir ter comigo ao corredor. Muito eficiente, já levava na mão a receita do analgésico e a alta já passada, explicando que deveria voltar para casa e repousar... repousar... até a fractura calcificar. Deu-me então ordem de marcha. Só não disse como!... É que não dava, Sr. Ministro! É que eu, mesmo assim tão “bem arranjada”... não conseguia...não dava mesmo!... No desespero do meu sofrimento e de todo aquele que visualizava à minha volta, implorei a uma figura que ali passava apressada, qual miragem, que me levasse dali para fora.

Abençoadas mãos, empurraram aquela maca, com pouca destreza é certo (nunca o haviam feito antes), mas com muita humanidade e muito espírito solidário.

-Bem haja por isso, alma caridosa!... Bem haja por não ter reparado nas minhas lantejoulas!... Com “personalidades” como esta é que vale a pena cuzar-mo-nos nas Urgências de um hospital. Afinal, até é Natal! Não custa nada!...

A propósito, será que ainda vou a tempo de dirigir a V. Exº uma prece de Natal? Os Reis ainda agora foram!... e aqui, tão pertinho de Espanha... não custa nada!... É só um desviozinho e, quem sabe, trazer um presentinho.

-Sr. Minitro, use a inteligência... não custa nada!!! Devolva a nossa urgência!!!

Fundão, 6 de Janeiro de 2008
In Kaminhos

Nota: Solidariedade um sentimento cada vez mais esquecido

Saudações Paulenses