29 fevereiro 2008

A Matança do Porco (II) - O acto e o convívio

" Eram mortos no tempo do frio,
O mais tardar pelas Janeiras,
Assim faziam o bom enchido
O belo chouriço das Beiras"
In: Vicente, António dos Santos, Vida e Tradições nas Aldeias Serranas da Beira.

(Continuação)




Depois de criado desde pequeno com o que a terra dava, ao longo de vários meses, finalmente era chegado o dia da Matança do Porco. Reunidos os convidados (geralmente familiares) e adiantados os preparativos, logo pela manhã, um dos homens entrava dentro do curral, amarrava o porco, puxava-lo para fora, com a ajuda dos restantes membros masculinos, e colocava o animal, sob o flanco, em cima de um banco de quatro pernas ou de um carro de bois. Com o animal assim imobilizado, um dos homens, geralmente aquele que tinha mais experiência (chamado "sangrador"), enterrava-lhe a sangradeira no tórax, dirigida ao coração. À espera, já se encontrava um alguidar com sal e um pouco de vinho tinto ou vinagre, que iria recolher o "licor de vida" do animal - o sangue, que seria, depois, mexido com uma colher de pau, evitando assim que coalhasse.

Ainda deitado, o porco era então chamuscado, com a ajuda de pequenos molhos incandescentes de carqueja, tojos ou giestas (hoje substituídos pelas chamas do maçarico), lavado com água (fria ou quente) e raspado com carquejas ou escovas, até que a pele ficasse branca. Posteriormente, o animal era colocado de costas no banco e fazia-se uma incisão no abdómen e no tórax para retirar as vísceras. Tiravam-se as tripas para um tabuleiro e as mulheres, separando-las umas das outras, procediam ao desmanchar (separação dos intestinos do mesentério) e à extracção da gordura. Despejada a bexiga do animal, limpava-se e enchia-se com ar, de modo a formar uma bola, com a qual as crianças brincavam e jogavam futebol. O coração, o fígado, os rins e alguns pedaços da barriga eram aproveitados para o almoço da matança - a buchada.



Na cozinha, as mulheres iam preparando a ementa que compunha o repasto: caldo verde, grão com carnes de porco, favas com chouriço, feijão, sarrabulho (guisado de sangue de porco com vinho tinto, alho, louro, fígado e pedaços de carne gorda ou magra) com batata cozida.

Terminada esta primeira fase, pendurava-se o porco numa trave do sobrado de um local fresco, através do chambaril (pau curvo que se enfiava nos tendões dos membros inferiores). Geralmente, esperava-se que a carne secasse e arrefecesse, de modo a que o talhe fosse mais fácil, e procedia-se, no dia seguinte, ao desmanche.

Seguia-se então para a mesa, onde o convívio sócio-familiar era um dos grandes momentos do dia. Os pratos atrás referidos eram geralmente acompanhados de pão caseiro, azeitonas, enchidos do ano anterior e bem regados com o vinho de produção familiar. Enquanto a família comia, bebia e passava a noite a conversar, o porco continuava pendurado.

No dia seguinte, havia muito pouco que não se aproveitasse do animal! A cabeça, cortada ao meio e esfolada, era depois transferida para a salgadeira. As espadas eram salgadas ou desmanchadas para os chouriços de carne. Os ossos, não totalmente desprovidos de carne, juntavam-se às restantes partes na salgadeira. E os presuntos eram aparados e mantidos em sal cerca de 40 a 60 dias.



A Matança do Porco sempre foi essencial para o reforço dos laços familiares e de vizinhança e um bom pretexto para o convívio. Apesar da intensa e frenética componente laboral, a Matança do Porco revestia-se também de dádiva e reciprocidade, visto que o proprietário do animal geralmente oferecia, para além das refeições ao longo da actividade, algumas peças de carne ou ajuda aos convidados.

No entanto, esta tradição perde-se nos tempos e nas novas exigências europeias, que cada vez mais nos empurram para o automatismo do viver a vida segundo as regras por outros implantados. É de lamentar, pois à medida que se perde a tradição, perdem-se os laços que por ela eram criados e reforçados. Seria louvável e do interesse comum que, à semelhança de outras freguesias, a Vila do Paul (sob a insígnia da Junta de Freguesia ou de outra qualquer instituição paulense) apostasse na realização de uma Matança (sem interesses económicos) aberta à comunidade, de modo a preservar, valorizar e dar a conhecer esta valiosa tradição e, claro, promover os laços sociais e o convívio entre a população paulense!

2 Rebolos:

DiasBrancoBernardoCosta disse...

É legal matar-se porco entre amigos

Cumprimentos

17/3/08 15:13
Lavadeira disse...

Tem toda a razão Manjedoura! É legal realizar uma matança tradicional, desde que seja em domínio privado e para consumo próprio. Ou seja, o proprietário do animal não poderá abatê-lo fora da sua propriedade (quintal, loja, garagem, etc) nem poderá vender carne ou enchidos a outrem.
No entanto, há outras prerrogativas a ter em conta:

"(...) Está, no entanto, prevista uma derrogação ao abate de animais das espécies acima referenciadas quando o abate seja realizado para autoconsumo, desde que a mesma seja excepcionalmente autorizada pela Direcção Geral de Veterinária e cumpridas as normas estabelecidas pelo Director Geral de Veterinária, relativamente às respeitante à protecção dos animais no abate estabelecidas no Dec-Lei n.º 28/96, de 2 de Abril, bem como as disposições do Regulamento (CE) n.º 999/2001, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio, que estabelece as regras para a prevenção, o controlo e a erradicação de encefalopatias espongiformes transmissíveis (BSE) , nomeadamente as relativas à adequada eliminação de determinadas matérias de risco especifico."
(In www.asae.pt; perguntas frequentes; abate clandestino)

Não tenho muito bem a certeza o que esta lei implica, mas suponho que uma quantidade jeitosa de papeladas e burocracias esteja incluída... Não sei...

Mas desde que a Matança seja realizada a "porta fechada", entre gente de confiança, não devem ocorrer visitas inesperadas...

Saudações Paulenses

19/3/08 21:37