01 fevereiro 2008
O Regicídio segundo Raul Brandão
D. Carlos de Bragança, Pelourinho de Vila Viçosa, aguarela sobre papel, 1885. Da col. da Sociedade Martins Sarmento
1 de Fevereiro de 1908
Está uma tarde linda, azul, morna, diáfana. Converso na Livraria Ferreira com o Fialho, quando entra esbaforido e pálido o pintor Artur de Melo, que conheço do Porto, e diz num espanto, ainda transtornado: – Acabam de matar agora o rei! - O quê?! – Eu vi, ouvi os tiros, deitei a fugir...
Fecham-se à pressa os taipais das lojas. Uma mulher do povo exclama: – Mataram agora o rei. Vi os que o ataram. Eram três. Dois lá estão estendidos. Passou um agora por mim, a rasto, com a cabeça despedaçada!... Há palmas para o lado da praça da Figueira. Anoitece. Um esquadrão desemboca da Rua da Mouraria... Mais tarde, no comboio, um empregado do Jorge O’Neill confirma: – Vi do escritório um polícia correr atrás dum dos assassinos. A certa altura caiu-lhe o chapéu: era calvo. O polícia varou-o com um tiro.
E, pela narração do Melo, do Armando Navarro e de outros que assistiram, reconstituo assim a tragédia:
O comboio descarrilara. Seguia atrasado. Durante o trajecto, o rei não fumou nem jogou, como costumava. Vinha apreensivo.
O Malaquias de Lemos contou que na véspera, em Vila Viçosa, o rei jogava com o príncipe. Era ao entardecer. Na chaminé um grande braseiro. Trouxeram-lhe uma carta. Para a ler melhor levantou-se, chegando-se à janela. Duas vezes a percorreu com a vista, e depois rasgou-a em bocadinhos, que atirou ao lume. Petrificou-se um momento, envolto na sombra... – El-rei não joga? – perguntou o príncipe. – Jogo, jogo... – Sentou-se, jogou, mas tão preocupado que quase não jantou nesse dia.
Nem uma nuvem. “Tarde sem par” – escreveu Ramalho. – Linda tarde para uma bomba – exclama uma menina da alta, na ponte da estação. Havia, é natural, um certo receio, e a duquesa de Palmela, ao ouvido de João Franco: – Não haverá perigo? – V. Exa. vai ver que ovação! – Tinha-lha preparado para a récita da noite, em S. Carlos. O rei e a rainha detiveram-se uns minutos, com o João Franco e o Vasconcelos Porto, que queria mandar vir um esquadrão de cavalaria para acompanhar o rei. D. Carlos opôs-se. O carro descoberto partiu a chouto, com toda a família real junta. Ao pé da estátua, um grupo... Disseminados pela Arcada, alguns polícias e, sentado num banco da praça, um homem de varino, que veio, sem precipitação, colocar-se à porta do Ministério do Reino.
Os empregados da Fazenda tinham-no notado. Seria um bufo? Os bufos eram tantos, que se não conheciam uns aos outros. – "Eu assisti – diz o Navarro. – Fui para lá uma hora antes fumar o meu charuto. Três descargas cerradas partiram da Arcada do Ministério da Fazenda. Ficou tudo desorientado. Os polícias deitaram a fugir..." Um negociante da Rua de S. Julião teve de os sacudir da escada. "Eu estava a quatro passos – confirma o pintor Melo. – Um homem subiu às traseiras do carro, olhou o rei cara a cara e deu-lhe um tiro de revólver. Vi um fumozinho branco sair-lhe do pescoço. O rei voltou-se e, cem anos que eu viva, nunca mais me esquece a expressão de espanto daquela máscara. Disse uma palavra que não percebi bem..." – "Ao primeiro tiro – continua o Navarro – a cabeça do rei descaiu para a frente, ao segundo tombou para o lado." O Buíça, que tirara a carabina debaixo do gabão, apontava e descarregava. O príncipe real ergueu-se – caiu varado. A rainha, louca de dor, sacudia o Alfredo Costa com um ramo de flores. – Então não acodem?! Não há quem me acuda?! – Ninguém. Um cartucho falhara ao Buíça: sacou-o, e ia apontar outra vez, quando o Francisco Figueira o estendeu à cutilada. Ouvi que, logo aos primeiros tiros, alguém procurara intervir – mas uma roda de gente desconhecida protegeu-o. Sucederam-se então os tiros sem interrupção. Muita gente falou em descargas... A Polícia disparava os revólveres a torto e a direito. O Correia de Oliveira esteve para ser morto: – Vinha de chapéu alto e foi o que me valeu!... Um polícia avançou direito a mim, com o revólver apontado, exclamando como um doido: – Matei agora um! matei agora um!
Correu hoje que o João Franco se suicidara e que o tinham acabado a tiro quando saía do Paço.
O infante D. Afonso seguia desvairado atrás do carro, com o revólver em punho, dizendo:
– O mano nunca quis ouvir os conselhos da mãe!
Depois, no Arsenal, para onde foram conduzidos o rei e o príncipe, teve este movimento colérico: bater no João Franco.
Acusam à boca cheia o João Franco – que não tomou precauções para o rei – de se meter por um corredor, quando foi ao Arsenal, e de mais tarde endireitar por uma cavalariça, para se enfiar na carruagem. De alguns ministros diz-se que, aos primeiros tiros, se esconderam no sótão dos ministérios, entre a papelada e as cadeiras sem fundo.
A rainha, no Arsenal, disse ao João Franco: – Veja a sua obra...
O rei chegou ao Arsenal já sem vida; ao príncipe custou-lhe muito a morrer. Foram ungidos depois de mortos. O padre não teve escrúpulos, porque os médicos garantiram-lhe que a vida podia prolongar-se por meios artificiais.
Do Arsenal seguiu a marcha trágica para as Necessidades: num carro, a rainha e o D. Manuel; noutro carro, o cadáver do rei, que a custo conseguiram meter lá dentro, e que o oficial de serviço amparava, e, no último, o duque de Bragança. Que se iria seguir? A revolução? Um negrume, o terror inesperado, afasta do Paço todos os que lá deviam estar àquela hora, Vem a noite... Se seis tambores fossem rufar para diante do Paço, a Monarquia acabava hoje mesmo. Espera-se tudo, espera-se o pior. E cada um trata de não se comprometer, ou de se comprometer o menos possível...
A D. Amélia entrou no Paço toda ensanguentada. As meias tinham-se-lhe colado às pernas, o sangue secara, e foi preciso arrancar-lhas.
Frase cruel dum popular:
– Foi caçado como ele caçava os javardos – e em tempo de defeso.
Raul Brandão, Memórias.
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